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O que é ser raro

Discurso apresentado por Pedro Henrique, no Dia das Doenças Raras, em São Paulo.

Olá! Meu nome é Pedro Henrique, tenho 24 anos e tenho Síndrome de Ehlers-Danlos.

Apesar de estarmos num evento sobre doenças raras e falarmos de tantas doenças raras, acredito que a doença que mais mata não é, de fato, uma doença rara, mas a falta de informação. É a falta de informação que mata pessoas antes mesmo delas descobrirem o que tem. É a falta de informação que nos faz sofrer por anos à fio com o tratamento errado, até que nosso corpo simplesmente não aguenta e se entrega à força da vida. É a falta de informação que nos faz ir de hospital em hospital, de médico em médico, procurando uma solução para nós mas, nem sempre, encontrando alguma. E não, não digo falta de informação só de uma pessoa ou só de um grupo, mas de toda a sociedade e, especialmente, da comunidade médica.

São conhecidas, em todo mundo, mais de 7000 doenças raras, sendo 80% delas, de origem genética. No brasil, existem cerca de 15 milhões de pessoas com alguma doença rara, algo em torno de 8% da nossa população. Dessas pessoas, metade são crianças. Dessas crianças, 30% morrem antes de completar cinco anos de idade. Todas as doenças raras juntas tem uma taxa de mortalidade que supera a taxa de mortalidade da AIDS e do Cãncer somadas. Considerando a taxa de mortalidade infantil, os óbitos causados por doenças raras e/ou problemas decorrentes delas estão em segundo lugar, atrás apenas de complicações perinatais.

Os números podem assustar, mas fazem parte de uma realidade quase sempre, ignorada. Muitas vezes, ignorada por falta de informação.

Eu tenho Síndrome de Ehlers-Danlos - SED, uma doença genética rara que afeta algo em torno de uma pessoa a cada 10.000 indivíduos. Ela causa, basicamente, a má formação do colágeno, que é uma substância presente em praticamente TODO o corpo humano. O colágeno funciona como o cimento para o nosso corpo, unindo órgãos, ossos, articulações, músculos. É que o dá resistência e, ao mesmo tempo, flexibilidade às nossas articulações. No doente com Ehlers-Danlos, o colágeno não é produzido corretamente pelo organismo, de modo que tudo se torna mais frágil, mais fácil de quebrar, torcer, deslocar, etc.

Mas, ao contrário do que se possa pensar, a Síndrome de Ehlers-Danlos não é uma doença tão visível assim e por isso, sofremos durante anos com o estereótipo do hipocondríaco, do reclamão, do fresco, do preguiçoso. Quando, na verdade, nenhuma dessas palavras tem qualquer fundamento.

O maior problema da SED, assim como das outras 7000 doenças raras é que, muitas das vezes, o paciente simplesmente parece não ter nada de errado. E assim eles vão sendo tratados para enfermidades, muitas vezes, nada a ver com sua doença principal.

Os médicos, de modo geral, estão acostumados (ou condicionados, como prefereir) a tratar os sintomas de seus pacientes sem, contudo, levar em consideração, as causas de seus problemas. Pegam alguém com fragilidade óssea e tratam para osteoporose. Pegam alguém com problema cardíaco e criam uma dieta balanceada. Mas, nem toda pessoa com fragilidade óssea tem osteoporose e nem todo doente cardíaco o é por excesso de gordura no sangue.

Doenças como a SED, a Osteogênesis Imperfecta e a Síndrome de Marfan são responsáveis, entre outros problemas, por fragilidade óssea e articular, decorrente da má produção de colágeno, ocasionando a desminirelização dos ossos. Essas doenças também são responsáveis por danos ao coração que, nem sempre, podem ser corrigidos aplicando-se somente uma dieta alimentar qualquer. Essas doenças também são responsáveis por hematomas frequentes, muitas vezes, espontâneos e sem causa aparente. Causam também, um grande número de fraturas, deslocamentos, luxações e subluxações, rompimento da córnea, má cicatrização, entre tantos outros problemas que, aparentemente, parecem problemas comuns. Mas só parecem.

Eu tenho 24 anos e, ao longo desses anos todos, passei por várias possibilidades de diagnósticos. Comecei com SED, depois consideraram Síndrome de Stickler, Síndrome de Marfan, Homocistinúria, SED tipo 6-A e, depois disso, podemos dizer que deram uma pausa forçada no serviço.

Minha vida foi sempre marcada por becos sem saída, situações em que os médicos simplesmente olhavam nos olhos de minha mãe e diziam que não podiam fazer nada porque não havia o que fazer e que não havia o que fazer porque eles simplesmente NÃO SABIAM o que fazer.

Se você olhar para mim, muito provavelmente irá pensar que eu tenho algum problema de saúde. Mas, nem sempre essa é a situação de uma pessoa com SED. A SED é uma doença invisível, mas marcada pela presença constante da dor. Há muita dor num sediano, dor quase sempre causada pelas luxações frequentes, pelo excesso de flexibilidade, pela pele frágil, pelos deslocamentos, pela coluna que se desvia, pelo coração que se cansa, mas, principalmente, pelo fato de nem sempre se saber o que se tem.

Nosso corpo se concentra dia e noite para manter tudo no lugar. Mesmo quando você dorme, seu organismo está, insconscientemente e involuntariamente, monitorando tudo em você, para evitar que suas articulações se soltem, que seus ossos saiam do lugar, que você se machuque. Nossos músculos ficam sempre na medida certa de tensão muscular, para manter tudo dentro do eixo. Mas, isso não acontece com o portador de SED. Para o sediano, a vida não é tão simples, seus músculos não conhecem o limite certo da força e, quase sempre, ultrapassam esse limite por não serem capazes de sustentar a si mesmos. Nossos ossos, mais frágeis, acabam por sucumbir a força incontrolável da doença que, entre tantos males, é capaz de atrapalhar o simples ato de abrir a tampa de uma garrafa. Vivemos um cansaço constante, costumeiramente chamado de FADIGA CRÔNICA, um sintoma tão real e presente quanto uma pele machucada, um osso fraturado ou uma articulação deslocada.

Em todos esses anos, sofri com muitas coisas, mas nem todas causadas propriamente pela SED.

Costuma-se dizer que as pessoas temem o desconhecido e incontrolável. É verdade. Na escola, tive de passar pelo preconceito de professores diante de minha aparência. Na família, tive de passar pelas recusas à pesquisa do histórico médico-familiar, em prol de uma auto-afirmação falha. Na vida posterior e profissional, tive de passar pela não aceitação ao trabalho, por conta da não aceitação de pessoas com doenças raras. Em todos os meus 24 anos, tive de passar por males, muitas vezes, mais incômodos do que a própria doença. Tudo por causa da falta de compreenção das pessoas diante do desconhecido que se apresentava em mim.

Superei tudo isso? Sim, superei. Mas, não sozinho. Uma grande força - talvez, a maior que já tenha conhecido - esteve e está ao meu lado esse tempo todo. Essa força é minha mãe que, durante todos esses anos, foi responsável por nunca desistir de mim, nunca desistir de procurar uma resposta, a mais pequena luz que fosse, que pudesse iluminar um pouco mais os nossos dias. Ela é responsável por me ensinar algo que carregarei comigo todos os dias, algo que pode ser resumido na seguinte frase: TENTAR SEMPRE. DESISTIR, JAMAIS.

Foi graças à minha mãe que hoje eu posso dizer (com um certo ar de orgulho) que sou um dos únicos - não posso confirmar isso - pacientes com SED laboratorialmente diagnosticado. E eu explico o porquê.

Tudo começou em 2008, quando minha médica, a Drª Dafne Horovitz (do Instituto Fernandez Figueira, no RJ) me falou da possibilidade de eu ter não a SED clássica - também chamada de Hipermobilidade Articular - mas um subtipo dela - chamado Cifoescoliótica, ou SED 6-A. Fiquei animado e então perguntei como poderíamos descobrir isso. Ela me falou que seria através de um exame que dosa a diferença entre duas substâncias presentes na urina e, a partir disso, confirma ou não, o diagnóstico. Topei fazer o exame e fiquei aguardando o resultado que, mais uma vez, acabou me levando a mais um beco sem saída, onde minha médica me pediu para esperar. Esperar que o avanço médico, laboratorial ou o que fosse, nos desse ferramentas capazes de nos ajudar a descobrir o que eu tinha.

Depois de um tempo pensando sobre esse beco sem saída, acabei chegando à conclusão de que nenhum beco sem saída é, realmente, sem saída. Quando estamos num beco, quase sempre nos esquecemos de olhar para o lado principal: aquele de onde viemos. E foi assim que não perdi as esperanças e fui, por conta própria, conseguir alguma coisa para mim mesmo.

Pouco tempo depois, a vida parecia sorrir para mim quando minha médica entra em contato comigo, falando que um grupo de pesquisadores haviam descoberto um outro subtipo de SED - mais um, considerando que a SED tem 6 tipos principais, os quais tem, cada qual, seu subtipo correspondente - e que haviam conseguido um meio de confirmar esse subtipo através de um exame de sangue.

Beleza, fiquei animado, mas não tanto. Topei em seguir adiante. Mas, alguns detalhes básicos: os pesquisadores não eram brasileiros e o laboratório deles, muito menos. O tal grupo, era um grupo de especialistas em genética lá de Israel e que eram pioneiros na descoberta desse subtipo da Síndrome de Ehlers-Danlos. Ou seja, para que nós tivéssemos alguma resposta, teríamos que enviar meu material lá para o outro lado do oceano e esperar sabe-se lá quantos meses para ter uma resposta. Mas, topei mesmo assim. Pelo sim ou pelo não, o que valia era tentar sempre, desistir, jamais.

E tentamos. Até que, em 2009, eu recebi um papel com 4 linhas, vindo lá de longe, do outro lado do oceano, que dizia, finalmente, quem eu era! Esse papel era o resultado do exame feito pelos médicos de Israel, e que confirmava que eu tinha (e tenho) Síndrome de Ehlers-Danlos, tipo 6-B, também conhecida como Síndrome da Córnea Frágil, nome decorrente do fato dessa variante da SED se caracterizar por danos frequentes aos olhos. Com esse resultado em mãos, pouco tempo depois, recebi um documento de três páginas que dizia de forma completa, quem era o Pedro. Esse documento é meu laudo genético, que explica tudo o que eu tenho e porque.

Nessa época, senti como se tivesse me libertado. Não pelo fato de saber que eu tinha uma doença rara, mas pelo fato de, finalmente, descobrir uma parte de mim, uma parte até então, desconhecida. Agora, eu sabia como me tratar, como me cuidar, o que fazer e como fazer. Sabia quem eu era, o que eu era e o que eu tenho.

Mas, como disse antes, eu devo ser um dos únicos casos no Brasil que tem um diagnóstico desse tipo. Por que? Pelo mesmo motivo pelo qual estamos fazendo este evento: por não haver um incentivo - seja do governo, seja da comunidade médica, seja da comunidade acadêmica - quanto às pesquisas sobre doenças raras. Somos 15 milhões de brasileiros que passam anos no escuro, sem saber o que temos, sem saber do que sofremos. Somos 15 milhões de pessoas que passam seus dias com dor, que morrem cedo, que morrem por falta de diagnóstico e, principalmente, tratamento adequado.

Não, não pedimos direitos exclusivos para quem tem doença rara. Pelo contrário, só pedimos um tratamento de qualidade. Pois quando se investe na saúde, mesmo que, inicialmente, em um grupo específico de pessoas, esse investimento, a médio e longo prazo, irá alcançar todos os outros usuários dos serviços da saúde.

Quando eu invisto em pesquisas ambulatoriais e laboratoriais sobre doenças raras, eu invisto na melhoria dos meus centros de pesquisa, das minhas universidades. da formação dos profissionais da área de saúde. E, obviamente, se eu invisto nisso tudo, não tem como esse investimento ficar preso a um grupo determinado de pessoas. Não. A tendência é que isso cresça e se espalhe para outros grupos, pessoas, comunidades, etc.

Investir é preciso, pois isso resulta na melhora da qualidade do diagnóstico e um diagnóstico preciso resulta num tratamento preciso. E um tratamento preciso resulta numa melhor qualidade de vida para o paciente. E é isso que queremos.

Mas, para que isso aconteça é preciso conscientizar a sociedade, como um todo, da existência dessas doenças. É preciso mostrar para o mundo que estamos aqui. É preciso nós superarmos nossa dor, nosso sofrimento particular e nos manifestar, nos unir por uma causa em comum e lutar. Pois é nossa luta que nos levará a algum lugar, é nossa luta que nos faz vir até aqui hoje, e montar uma mesa de debate com representantes do governo para estabelecer políticas que visem o melhor atendimento às pessoas com doenças raras pelo SUS.

Para termos uma ideia da grandiosidade do que estamos fazendo, desde que me envolvi na organização do nosso evento, tenho falado com pessoas de diversos cantos do Brasil, do norte ao sul, de leste a oeste. Mas, não para aí. Mais do que isso, tenho falado com pessoas de diversos lugares do MUNDO! Pessoas de El Salvador, do Canadá, da Austrália, da Europa. Pessoas que tem visto nossa mobilização aqui, no Brasil, e usado isso como ferramenta de incentivo para eles lá, tão longe de nós, mas conectados conosco pelo mesmo espírito de luta!

Somos nós que estamos aqui, mas essa luta não é só nossa. Essa luta não se restringe só às paredes desse lugar. Ela vai além, além do tempo, além do espaço, além das pessoas. Ela busca igualdade para todos, tratamento digno para todos. Ela busca a conscientização, mas também, a melhora da sociedade através da informação, através do combate à doença que mais nos mata: a desinformação.

Não podemos desistir. Não podemos por vários motivos: porque a vida para nós, doentes raros, tem um significado muito maior. Porque a nossa vida se mostra algo muito mais profundo e mágico, pois vivemos cada dia como se fosse o único e o último - e muitas vezes, é. Não podemos desistir porque somos brasileiros e brasileiros nunca desistem. Não podemos desistir, porque desistir é fácil demais. Não podemos desistir porque nossa vida é como um vídeo-game, cujo os obstáculos que enfrentamos nos deixam mais fortes e capazes de enfrentar os próximos e assim em diante.

Não podemos desistir simplesmente porque não podemos. Porque se nós mesmos não lutarmos, não haverá quem lute por nós. Não haverá que possa nos dar esperança. Não haverá quem possa nos dar consolo.

Essa luta é cansativa, mas necessária.

Lutar sempre. Desistir, jamais!

Meus cumprimentos.

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